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Conselho Federal de Medicina esclarece a interpretação da resolução 2232/2019

Atualizado: 27 de jan. de 2021

Olá,

no último post comentei sobre a resolução CFM 2232/2019 e contei para vocês sobre os questionamentos que eu enviei para o Conselho Federal de Medicina.

Recebi a resposta do presidente do Conselho no dia 04.10 mas não publiquei aqui antes por duas razões: a) eu estava doente; b) entendo que há nas respostas alguns erros de digitação e os questionei.


Vejam abaixo:

1. Nas respostas aos questionamentos “a” e “b” a justificativa foi dada com base no artigo 42 do CEM, contudo creio que o correto seria 41:

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

Art. 42. Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança, reversibilidade e risco de cada método.


2. Nas respostas aos questionamentos “a” e “b” a justificativa cita a resolução 1995/2013, todavia a resolução 1995 foi publicada em 2012.

Contudo, como já melhorei, ainda não tive resposta e entendo que são meros erros de digitação, resolvi postar para ajudar a todos os que trabalham com autonomia no fim de vida à interpretar a nova resolução.

Segue a resposta, ipis literis.


Abraço,

Luciana.

. .

“Prezada Dra. Luciana Dadalto,


Acusamos o recebimento de sua correspondência eletrônica, protocolada neste Conselho sob o nº 009425/2019, de pedido de esclarecimentos concernentes à Resolução CFM nº 2232/2019. Seguem abaixo as respostas a seus questionamentos:

a) se a recusa terapêutica for feita por um paciente em sua diretiva antecipada de vontade, estando esse paciente em processo ativo de morte, a recusa poderá ser aceita pelo médico ou nessa situação aplica-se o artigo 11 da resolução CFM 2232/2019?


Resposta: A Resolução CFM 2232/2019 não revogou o artigo 42 do Código de Ética Médica, tampouco a Resolução CFM 1805/2006 e a Resolução CFM 1995/2013.

b) se a recusa terapêutica for feita por um paciente em sua diretiva antecipada de vontade, estando este paciente em terminalidade mas sem processo ativo de morte, a recusa poderá ser aceita pelo médico ou nessa situação aplica-se o artigo 11 da resolução CFM 2232/2019?


Resposta: A Resolução CFM 2232/2019 não revogou o artigo 42 do Código de Ética Médica, tampouco a Resolução CFM 1805/2006 e a Resolução CFM 1995/2012.

c) o que são as “situações de risco relevante à saúde”, dispostas no artigo 3o da referida resolução?


Resposta: Risco é evento futuro, é “possibilidade de perigo” (Simônides Bacelar et al. Expressões Médicas: Glossário de dificuldades em terminologia médica. Brasília: CFM, 2018, p. 338). Situações de risco relevante à saúde são aquelas que, na evolução do quadro, ao qual opôs-se a recusa a terapêutica indicada, apresentam a possibilidade comprometimento do “estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e funcionais do organismo dentro dos limites normais para sua forma de vida e para a sua fase do ciclo vital.” (Houaiss, 2009).

d) a resolução trata da objeção de consciência no âmbito da recusa terapêutica, contudo, há a possibilidade fática de o médico discordar de um pedido de terapêutica, notadamente quando o paciente deseja obstinação terapêutica. Nesses casos, o médico poderá se utilizar da objeção de consciência ou deverá cumprir o solicitado pelo paciente?


Resposta: A objeção de consciência é um direito do médico ante a posição do paciente, aplicável quando se impõe um fazer ou um não fazer contrários a sua consciência. A posição do médico, nesse caso, é a mesma que consta do §2º, do art. 2º da Resolução CFM 1995/2012: “§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.” Essa situação está prevista, com o mesmo sentido, na lei portuguesa que tratou das diretivas antecipadas de vontade (Lei n.º 25/2012, de 16 de julho): “Artigo 5.º Limites das diretivas antecipadas de vontade. São juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas antecipadas de vontade: a) Que sejam contrárias à lei, à ordem pública ou determinem uma atuação contrária às boas práticas; (…)”

A ação e a omissão contrárias às boas práticas médicas, por imposição do paciente, autoriza a ruptura da relação médico-paciente por objeção de consciência, desde que o médico assegure a assistência nos termos previstas na Resolução, até que outro médico, sem a mesma objeção, assuma a assistência.

e) o artigo 12 da resolução 2232/2019 trata da formalização da recusa terapêutica quando a recusa expuser o paciente a perigo de morte. Esse artigo não contradiz o artigo 11 que afirma que nas situações de iminente risco de morte a recusa terapêutica não será válida?


Resposta: Há duas situações essencialmente distintas. A exposição a perigo de morte é um evento futuro que decorre do agravamento do quadro, cujo tratamento foi recusado. Ainda não há risco de morte. No iminente risco de morte o quadro está presente e a expectativa de salvação está no tratamento indicado e recusado pelo paciente, imediatamente. Não há contradição.

f) sendo a paciente mulher e gestante e estando ela em estado vegetativo persistente com diretiva antecipada na qual recusava procedimentos invasivos, por exemplo, nutrição e hidratação artificial, é dever do médico realizar os procedimentos com a finalidade manter a vida biológica da paciente afim de proporcionar a continuidade da gestação?


Resposta: Nem toda recusa terapêutica da mãe caracteriza abuso de poder em desfavor do nascituro. A Resolução diz “pode”, ou seja, depende do caso concreto, real.

Por essa razão, não se deve rotular situações teóricas como abusivas; e se não são abusivas, a recusa terapêutica deve ser acolhida nos termos do art. 13 da Resolução.

Quando há abuso de poder, instaura-se um conflito de interesses (de direitos e de expectativa de direitos) de dois pacientes, designados na Resolução pelo binômio mãe/feto. A Resolução não avança uma posição sobre o status jurídico do nascituro, contudo, reconhece que, para o médico, no pré-natal, o feto também é um paciente.


A recusa terapêutica, com abuso de poder materno, não autoriza o médico a realizar o tratamento indicado à força. Nenhum caso de abuso de poder será resolvido à força, pelo médico, mas legitimará a quebra do sigilo para comunicar o fato às autoridades elencadas na Resolução, salvo em situações de urgência e emergência que caracterizarem iminente perigo de morte, em que o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica.


Um exemplo frequente nos hospitais brasileiros facilita a compreensão do abuso de poder materno: uma mulher grávida, com feto viável, sofre um acidente, com risco iminente de morte. Nas suas diretivas antecipadas, instrumento utilizado na pergunta formulada, ela se opôs ao parto cesariano. Posto que não há como se realizar parto vaginal nesse caso, qual é o papel esperado do médico: – fazer uma cesariana de emergência e salvar o feto ou cumprir a vontade da mãe de deixá-lo morrer?


Evolua-se o quadro. A mesma mãe entra em morte encefálica. Médica e juridicamente, está morta. Não falaremos de diretivas antecipadas de vontade para não viabilizar discussões acadêmicas. Mas ela deixou documento escrito, um codicilo, por exemplo, em que não aceita a realização de cesariana para salvar o filho, que pretende “levar” consigo. Os familiares pedem o cumprimento da disposição de última vontade. No dia a dia esse pedido é teórico. Acontece exatamente o contrário. Isso não exclui a possiblidade. Indaga-se: qual é o papel do médico? Deixar o feto morrer e cumprir a decisão da mãe ou salvá-lo com uma cesariana?


Anote-se que algumas soluções preconizadas pela Resolução têm inspiração em modelos estrangeiros, perfeitamente compatíveis com o sistema jurídico brasileiro. Uma dessas soluções é conhecida como conflito de deveres, prevista no artigo 36.º do Código Penal português:


“Artigo 36º Conflito de deveres 1 – Não é ilícito o fato de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar. (…)”

A Resolução tem o paciente como essa “autoridade” ética e moral, sujeita, contudo, a ter algumas ordens, ainda que legítimas, descumpridas para satisfazer um dever igual ou superior, a depender do caso concreto.

Atenciosamente,


Dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro Presidente do CFM”

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