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Das falácias que nos contam….

Atualizado: 27 de jan. de 2021

Com uma frequência mais do que eu desejava, tenho visto profissionais de saúde expondo os seguintes conceitos:

(i) diretivas antecipadas de vontade são os documentos de manifestação de vontade do paciente sobre seus cuidados médicos escrita no prontuário pelo profissional, enquanto o testamento vital seria o documento, também de manifestação de vontade do paciente sobre seus cuidados médicos escrito pelo próprio paciente, fora do ambiente hospitalar.

ou ainda,

(ii) diretivas antecipadas de vontade é o nome que se dá à vontade do paciente enquanto que testamento vital é o nome que se dá ao documento pelo qual o paciente manifesta essa vontade.


A verdade é ambas as diferenciações são distorções dos institutos, causadas, possivelmente, pelo fato de sermos o único país do mundo que começou a discutir o tema por uma entidade de classe, representativa de uma profissão.

No Brasil, a primeira normativa sobre o tema foi a resolução n. 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Nessa norma optou-se por usar apenas o termo diretivas antecipadas de vontade, eximindo-se de diferenciar suas espécies. Vejamos:


O testamento vital é um documento de manifestação de vontade do paciente, por meio do qual este expressa a quais cuidados, tratamentos e procedimentos médicos ele deseja ou não ser submetido quando estiver com uma doença grave, incurável e terminal. Surgiu no final da década de 1960 nos Estados Unidos da América sendo chamado nesse país de living will.


Ocorre que a população americana ansiava por um meio de transferir esse poder decisório para um terceiro, ao invés de tomar a decisão. Assim, surgiu a procuração para cuidados de saúde (durable power of attorney). Em 1991, esses instrumentos foram positivados por uma lei federal a Patient Self Determinaction Act, que deixa claro em sua terceira sessão que a diretivas antecipadas de vontade (advanced directives) tratam-se de um gênero de documentos, do qual são espécies o testamento vital e a procuração para cuidados de saúde, de modo que estar-se-á diante de uma DAV apenas quando o paciente, em um mesmo documento, manifestar sua vontade sobre os cuidados, tratamentos e procedimentos médicos que deseja ou não receber e, ao mesmo tempo, designar um procurador para fazer cumprir sua vontade e ser ouvido pelos profissionais caso seja necessário decidir por algo não previsto por ele.

Uma forma simples de desenhar a relação desses institutos é:


Desta forma, é plenamente possível que o paciente faça apenas testamento vital ou apenas uma procuração para cuidados de saúde. Como eu explico no livro “Testamento Vital”, a confusão terminológica no Brasil (e nos demais países com idiomas latinos como França, Itália e Espanha) é fruto de uma tradução inadequada do termo will que, de acordo com o dicionário Oxford possui três acepções: vontade, desejo e testamento. Desta feita, ao invés de traduzirmos por “disposições de vontade de vida” ou algo semelhante, traduzimos por testamento de vida ou testamento vital.


Ocorre que essa aproximação terminológica com o instituto do testamento (patrimonial) gerou – e ainda gera – grande desconforto, haja visto que o termo testamento tem conotação de documento que produz efeito post mortem e, definitivamente, esse não é o caso do testamento vital


Nesse contexto, o Conselho Federal de Medicina, ao editar a resolução 1995/2012, dispôs acerca das diretivas antecipadas de vontade, sem qualquer menção ao termo testamento vital, nomeando a espécie pelo gênero, possivelmente inspirado por Portugal, que nesse mesmo ano (2012), havia legalizado o assunto com semelhante impropriedade terminológica.


E aqui é possível questionar: qual é o problema? Não interessa o nome, interessa que o paciente possa manifestar sua vontade…. Concordo em partes. Isso porque estamos falando de um instrumento jurídico –documentos que tem valor e produz efeitos na vida do paciente, de seus familiares, amigos, da instituição hospitalar e da equipe assistencial. Documentos que não foram inventados por nós brasileiros, nem pelos portugueses. Documentos que tem sido legalizados em muitos países.


É certo que a resolução CFM mencionou a possibilidade de nomeação de procurador, mas trata-se de uma faculdade e não uma obrigatoriedade, portanto, o que o conselho fez, em verdade, foi normatizar eticamente o testamento vital, na relação médico-paciente, deixando à cargo do paciente a instituição de uma DAV, quando quiser nomear um procurador. Nota-se que em nenhum ponto da resolução fala-se em obrigatoriedade nessa nomeação, nem mesmo a possibilidade de que o paciente apenas nomeie um terceiro, sem que manifeste seu desejo. Ou seja: o CFM regulou o testamento vital, espécie de DAV, facultando ao paciente a realização de uma DAV.


Portanto, peço encarecidamente um favor a todas as pessoas que falam sobre o tema: não aumentem a confusão terminológica, pois confundir a sociedade é uma das formas de distanciarmos os cidadãos da efetivação desse direito: à autonomia no fim de vida, o direito de manifestar  sua vontade para cuidados, tratamentos e procedimentos de saúde!

Em tempo: o projeto de lei n.267/2018 que tramita no Senado Federal explica de forma clara esses conceitos.

Abraço,

Luciana.

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